ALDO CALVET

 

BIOGRAFIA : DRAMATURGIA INDEX : DRAMATURGIA


DEUSES DO VIRA-MUNDO

  1. 1968.



Gênero:             

  1. Monólogo

  2. Tragicomédia baseada em “O Degredado”,

  3. Romance de Alves Borges



  4. Esta peça só poderá ser representada, no todo ou em parte, seja por que processo for, mediante autorização expressa da SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais.


PERSONAGEM:    

  1. MICTÃO

  2. Em algumas cenas o ator interpreta mais de um personagem, dialogando com MICTÃO.


TIPOLOGIA:   

  1. MICTÃO aparenta uns 35 anos, tez queimada pelo sol tropical. Apesar de uma vida sofrida, mostra-se vigoroso, destemido, valente. Pode, às vezes, carregar um pouco na prosódia portuguesa, embora a prosódia adotada seja a brasileira (carioca). Veste-se como os que chegaram ao Brasil em 1533, com Duarte da Costa.


CENÁRIO: 

  1. Uma rotunda azul claro como fundo para projeção de filmes e outros efeitos técnicos.


TRECHOS:

  1. MICTÃO – diante do público


  2. A cadeia não significa para mim nem vergonha nem castigo. Como marginal, descobri na cadeia minha verdadeira personalidade. (Com absoluta naturalidade) Eu sou um crápula. Condenado ao degredo. E daí? (OT) Da janela da cadeia, espio o oceano lá fora. Dia após dia, espero o momento do embarque. (OT) Certa tarde, trazem para a minha cela um boa pinta, degredado como eu. O tipo é abominável. Vive a chorar pelos cantos do xadrez, como bicha histérica apavorada com o degredo. (Cuspindo de nojo) Nojento! (Rindo. Sereno, à meia-voz, em mímica) Na primeira noite, me aproximo do cara, tateando no escuro; ele pensa que procuro consolo. Eu, hein? Ele deixa eu passar o braço pelos seus ombros... ( Olhando lado a lado, rápido) Foi aí que estrangulei o porra com as algemas que ornavam meus pulsos. (Tranquilo) Coitado. Morreu de boca aberta. A língua inchou de repente. Agora, reparo, ele ficou espantado, como a me perguntar: “Porra! Por que você fez isso?” Talvez para ajudar você a encontrar o paraíso. “Morreu pelo equívoco de um instante de precipitado juízo. Morreu quando apenas a força era argumento” (Levanta e se afasta) A força que sacrificou Tiradentes, Beckman, Lorca...


  3. PROJEÇÃO – Tiradentes na forca. Beckman. Fuzilamento de Garcia Lorca.


  4. Ora... a liberdade  (Pausa. Ouvem-se, ao longe, os sons quase imperceptíveis de uma mistura de“Marselhesa”com o “Hino da Independência”.Coro, vozes etc.)


  5. Carcereiro, ele se suicidou por mera vocação. (Ajoelha e reza) “Vai, Inácio, não ouças o cálido bramido/ Dorme, voa, repousa” (Levantando) Os guardas querem cobrir a boca aberta e a língua inchada do marginal morto. Nessa hora, volto a me lembrar de Lorca: ( com ar de piedade) “Não quero que lhe cubram a cara/ Com tais lenços pra que se acostume com a morte”... (OT. Transição rápida, cantando e dançando) “E que tudo mais vá pro inferno!”

  6. (Depois de pausa, com visível alegria) Chegou o dia da partida. Cheio de correntões de ferro nos pés, nos braços, pelo pescoço, sou conduzido para o porto com honras de escolta. Não há qualquer espécie de despedida.


  7. PROJEÇÃO: caravelas, naus, galeões.


  8. Lá estão, a ponto de arribar mar a fora, uma caravela, um galeão e uma nau; todas as embarcações equipadas com armas de guerra. Que transa é essa? Não há guerra e os barcos estão armados até os dentes!? Não dá pra entender. Estou convencido que vão me mandar para a África. África, uma ova! Eu mereço castigo maior, muito maior: colônia do Brasil! Dos correntões de ferro nos pés, no pescoço, nos braços, só me vejo livre em mares “nunca dantes navegados”. Pular para o oceano... já viu, né? Sem saber sequer para que lado fica a margem mais próxima. (Gesto) Aqui ó! Não é mole não. (A um espectador) O senhor faria o mesmo que fez um patrício? (Imitando um português chucro) Se cá desta banda hai terra, da oitra hai de tere tambãim. (Pausa) O gajo se jogou e nunca mais chegou nem de um lado nem de outro. Sumiu. (OT) Só em alto mar, o comandante diz que a verdadeira finalidade da expedição é dar caça aos navios corsários que infestam as costas da nova colônia. O Almirante tá lá no tombadilho. Homem bacana. Barba negra, tipo esquerda festiva, punhos de ferro, olhar glacial que domina todo mundo. Possui exatamente aquilo que eu não possuo – caráter. Participa da tripulação um Bispo-Gordo que lembra uma velha grávida; é um ex-juiz do Tribunal da Inquisição, o Santo Ofício. É Dom Pedro Fernandes Sardinha, chefe de uma turminha de Magros-Jesuítas, tão magros que lembram os judeus esqueléticos encontrados nos campos de concentração nazistas. A missão da padralhada é essa coisinha simples: civilizar selvagem. Parece piada. Depois de certa enrolação, o Bispo-Gordo entra com uma conversa mole. Quer saber por que fui condenado. Para escandalizá-lo, respondo nas bochechas: homossexualismo! O Bispo-Gordo fica vermelho, vermelho, como um pimentão maduro. Pra ele entender melhor, acrescento com certo orgulho: viadagem, como dizem na Capitania de São Vicente. (Dá uma estrepitosa gargalhada) Cinismo? Não. A gargalhada que estourou no oceano é de um Fidalguinho que se amarrou no Bispo-Gordo. Ficamos amigos, eu e esse Fidalgote. Amizade entre dois crápulas. O Fidalguinho é sobrinho do donatário de uma das capitanias da colônia. Puxa! Quando eu soube disso, comecei das puxadinhas e cheguei às puxadonas... 


  9. PROJEÇÃO – LEGENDA – “Um canalha reconhece outro canalha num simples olhar” – Joaquim Silvério dos Reis


  10. Puxo o saco do Fidalguinho, excitando suas taras. Compreendem... (Depois de pausa) Ao chegar às Ilhas de Cabo Verde, ainda cheio de correntes, vejo logo que o sacana do Fidalgote não me dá a mínima proteção.


  11. PROJEÇÃO – LEGENDA – “Matar um cadáver, além de ridículo é cômico” – Guerra Junqueiro


  12. (OT) Distante uma semana de Cabo Verde; esperando o vento, esperando o tempo, esperando a onda, esperando, esperando... castigado pelo sol do verão tropical, enquanto o Médico-Alquimista se enrola todo, sem saber se espia o céu, se atende os doentes de insolação, o Bispo-Gordo destila, com o calor. Dom Sardinha derrete como uma pedra de gelo redonda, imensa. Sabem o que faz com o calor? Só a batina, nada mais no corpo. Tudo solto! (Num repente, olhando para baixo) Um afogado! Olha lá! (Extasiado) Que delícia macabra! O malandro desliza sereno e tranquilo sobre a imensidão do mar. (Cantando com música de “O Mar”, de Caymmi) O mar/ Quando fora da praia/ É furor/ É pavor/ O mar... (Reparando) Puxa! Tá inchando paca! Parece um sapo boiando de papo pro ar. (Deita, cantando “Não quero outra vida” de Heckel Tavares e Olegário Mariano) “Não quero outra vida/ Pescando no rio de gereré/ Tem peixe bom, siri patola de dá com o pé/ Quando no terreiro/ Noite de luar/ Vem a saudade/ Me atormentar/ Eu me vingo dela/ Tocando viola/ De “saco” pro ar...”  (OT) O afogado sai do mar e volta pro mar, depois de um papo em latim do Bispo-Gordo. Mesmo morto, impesta a nau de varíola. Nove da tripulação abotoam o palitó e baixam oceano profundo. O Bispo-Gordo se amarra num terço de prata a fazer (gesto com as pontas dos dedos) pílulas sem cessar. Gabriel Malagrida, magro e curvado, dá a extrema-unção aos moribundos; o Médico-Alquimista, indiferente, de luneta no olho, consulta as estrelas, sem entendê-las, estão a vê-las... O Jesuíta-Santo olha o Médico-Alquimista, fala pra mim:

  13. - (Novo tom) “Eu, que tenho o céu na alma, não consigo penetrá-lo, como pretende consegui-lo esse pobre cultor da panacéia da espagíria, através de um vidro fosco?

  14. O Fidalgote-Meu-Torpe-Amigo tá de varíola. Caso benigno. Cuido dele e do beliche. Ele me dá um cordão com um medalhão de ouro. Nem pensei em recompensa nenhuma (Com doçura na voz) O Fidalgote-Meu-Torpe-Amigo avalia a vida dele a peso de ouro. O Bispo-Gordo escapou da peste, acendendo uma vela a Deus e outra ao diabo. É humano. Vencida a epidemia, há salvas de morteiro. Logo na matina do outro dia, o Fidalgote vai se queixar ao Piloto-Mor. Se diz vítima de roubo. Os objetos roubados são o cordão e o medalhão de ouro que me deu! Todo mundo aí na platéia tá xingando a mãe dele. Filho da puta! Depois dessa, sou amarrado ao mastro, chicoteado, grilhões nos pés, nos braços, na cintura, no pescoço, ferrado, ferrado. Três dias de porão a pão e água valem para muitas reflexões filosóficas. Finalmente, eu havia encontrado um cara bem mais canalha do que eu – avis rara na terra. Preciso aproveitar a oportunidade para aprender muitas coisas com tão nobre patife. Depois que cumpro a pena, o Fidalgote-Meu-Torpe-Amigo me encontra no tombadilho. No rosto, dolorosa expressão de lástima. Me abraça, me beija, pede desculpas.

  15. - (Novo tom) Sabe, nem me lembrava que te havia dado as jóias, malandro.

  16. Nada falo. Me tranco. Há entre nós compromisso mais forte que simples “conivência entre canalhas” – é a sórdida cumplicidade no crime. Estamos a quatro léguas de terra. Por ordem do Almirante, o Capitão-da-Caravela se manda na frente, para sondar a barra. Se arranca de madrugada. Volta no dia seguinte. Trás até a nau capitânea três selvagens. Eu nunca tinha visto um índio. Os índios são de um marrom assim cor de bosta. Todos têm um osso enfiado no beiço inferior. Os caras tão nuzinhos, nuzinhos de  piru de fora e tudo... Que beleza! O Bispo-Gordo e os Jesuítas-Magros se escandalizam com o despudor da inocência. De regresso à terra, os indígenas acendem um fogueirão que lança uma cortina longa de fumaça pela praia. Homenagem? Aqui, ó! É um aviso aos corsários.. Os sacanas são aliados dos piratas espanhóis. Não demora nada e duas naus espanholas aparecem mandando uma brasa firme.. É a minha chance: passar de degredado a herói. Como? Segurança, meu filho. Tudo por conta da segurança. A velha história, malandro, matar na guerra não é crime, é ato de bravura, heroísmo. De espada e garrucha, sou o primeiro a enfrentar os piratas. O Fidalgote-Meu-Torpe-Amigo vê o banho de sangue com histeria de fazer amor. O riso nervoso dele parece gemido orgásmico de gozo. Ele está amarelo como um nordestino cheio de impaludismo. O puto se agarra a mim.

  17. - (Novo tom) Eu tou todo borrado.

  18. O covarde não se contenta com o inimigo morto. O crime só entusiasma o safado com requintes de crueldade. É pra ele uma curtição. Vê em mim capacidade para tudo aquilo que ele pensa mas não executa. O Fidalgote é como certos torturadores: calmos, tranquilos, dotados de irresistível apetite assassino, só que nunca chegam ao plano sinistro... que me perdoe Wladimir Herzog... Com ímpeto sádico de sangue, avançamos nós, os bravos lusitanos!



  19. PROJEÇÃO: Lutas entre corsários.

  20. LEGENDA:   Os criadores de guerras “são como hienas – se alimentam dos crimes alheios”. (Colocar nomes de generais da última guerra mundial).



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