ALDO CALVET
ALDO CALVET
Gênero:
Drama - 2 atos
PERSONAGENS:
VICENTE - 91 anos
GABRIEL - 86 anos
SÍNTESE:
Vicente se encontra com Gabriel em idêntica situação rumo ao fim da vida. Conversam sobre diversos assuntos. Vicente sempre foi ladrão. Nada obteve de duradouro, além de perseguição constante e cinqüenta anos intercalados de cadeia. Gabriel foi sempre trabalhador. Trabalhou toda a existência. Nada conseguiu de vantajoso senão meio salário mínimo com desconto para cobrir rombo financeiro de outrem. Vicente e Gabriel estão na indigência. Observando a conduta de Vicente, entendemos que, em quase um século de roubo, já não devíamos supor que estivesse ali apenas uma simples e irresistível tendência cleptomaníaca, mas uma nova filosofia de vida a ser difundida, principalmente porque, ao lado - em Gabriel - estava a personificação do trabalho, aquele que trabalhou continuadamente e chegou à conclusão que trabalhar a vida inteira também resulta em nada. Mas, então, como enriquecer - ambição maior do homem? Só é possível enriquecer explorando as fraquezas do semelhante. A exploração mais fácil é ter como assalariado ou escravo o homem. No mercado de trabalho o explorador pode ser uma empresa privada e pode ser também o Estado. O acúmulo de riqueza reside na espoliação do homem pelo homem, até porque dos animais de tração de manejo dócil, por demasiado domesticável e adulador, é o homem, exatamente, o que menos cria atritos e o que pouco dispêndio diário causa em salário e ração. Vicente e Gabriel só chegam à exatidão desta verdade quando, já macróbios, não dispõem mais de tempo para exercerem a única profissão rendosa existente em toda sociedade do mundo - a de patrão ou amo.
TRECHOS:
" O convívio dos opostos é a maior homenagem que podemos prestar à liberdade" Tristão de Athayde
"VICENTE - (Confidencial) Conto só pra você. É segredo profissional. Não conta pra ninguém. Eu sempre tive uma inclinação invencível pra me apossar de tudo...
GABRIEL - (Corta) Apossar...
VICENTE - De tudo dos outros.
GABRIEL - Porra! Não entendi.
VICENTE - Apossar. Tomar posse, tá entendendo, velho tonto?
GABRIEL - Tá bom. Você trocou as bolas.
VICENTE - Que bolas?
GABRIEL - Você quer dizer, roubar tudo dos outros. É isso?
VICENTE - Roubar é muito vulgar. No meu particular tratado de rapinagem defino assim o verbete: apossar - impulso instintivo de violência contra um objeto que pertence a outrem. (Ri)
GABRIEL - Atrevido e cínico. Apossar-se do que não lhe pertence é roubo aqui e na Conchinchina.
VICENTE - Não me enche o saco que eu te arrebento os cornos, seu velho bunda-mole.
GABRIEL - Que adiantou esse roubo todo se tu tá numa merda que faz gosto?
VICENTE - Que merda, que nada. Só por que durmo aqui?
GABRIEL - Fica praí todo orgulhoso: nunca trabalhei, nunca trabalhei.
VICENTE - E nunca trabalhei mesmo.
GABRIEL - A vadiagem ainda é contravenção, malandro.
VICENTE - A vadiagem, sim. A viadagem, não.
GABRIEL - Então, você troca a vadiagem pela viadagem.
VICENTE - Porra! Lá vem você com as suas indiretas.
GABRIEL - (Alto) Tá bem, tá bem. Não trocou. É vadiagem.
VICENTE - Pára de falar berrando, seu velho mal educado.
GABRIEL - Tá com medo, hein, malandro?
VICENTE - Vivi livre, sem patrão pra me foder a paciência.
GABRIEL - (Debochando) Livre. Tá com medo da polícia. Viveu sempre com medo. Viver se escondendo não é livre porra nenhuma.
VICENTE - Reconheço que tudo foi inútil.
GABRIEL - Tudo. Roubando ou trabalhando.
VICENTE - Só tive uma vantagem: nunca fui empregado de ninguém.
GABRIEL - Eu sempre fui empregado de alguém." ...
"VICENTE - Era um tal de faturar e desfaturar...
GABRIEL - Safadeza, sacanagem, putaria.
VICENTE - Tinha que subornar.
GABRIEL - Subornar?
VICENTE - Pra eu fugir da prisão. Dinheiro alto.
GABRIEL - Então... Uma nota preta.
VICENTE - Levavam tudo. Fechavam o olho e levavam.
GABRIEL - Compreendo. Teus colegas de quadrilha...
VICENTE - (Corta) Que quadrilha nada. Não agia com quadrilha. Eram comparsas, colegas. Só que eles tinham muita autoridade...
GABRIEL - Estou manjando...
VICENTE - Gabriel, vou te confessar meus fracos: roubo e mulher. Roubar tudo e desejar a mulher do próximo ou a mulher do distante.
GABRIEL - Bom. Noutros tempos... Agora, você não deseja mais nada. Agora, velhinho, você tá na pior brochura...
VICENTE - (Corta) Brochura é uma só...
GABRIEL - (Corta) Não. A pior é a da falta de interesse.
VICENTE - Você também não tem mais interesse. Não vai me enganar que tem.
GABRIEL - Às vezes. De madrugada. (Outro tom) Roubar e desejar a mulher dos outros - dois grandes pecados. Nem o João Paulo te salva.
VICENTE - Ponto de vista. Olha, meu pobre Gabriel, você também tem um grande pecado.
GABRIEL - Eu?
VICENTE - Você, burro de carga. Você não fez mais nada na porca da vida. Só trabalhou. Vive, agora, dessa migalha: cobranças de contas perdidas e meio salário mínimo...
GABRIEL - (Corta) Com desconto para a previdência.
(Riem ambos)
VICENTE - Descontar meio salário mínimo, chega a ser desumano. Gabriel, estou desconfiado que você ainda vai acabar sendo preso." ...
"VICENTE - Você, Gabriel, pode me chamar até de santo.
GABRIEL - (Mesmo jogo) Aí também é demais. É uma calúnia.
VICENTE - Não me ofende.
GABRIEL - Tá insensível o Rosinha de Bagé. (Ri) Escuta, você foi ladrão...
VICENTE - (Interrompe) Foi, não. Tou velho mas não tou morto, porra! (Depois de breve pausa, observa com interesse Gabriel tirar de uma sacola um embrulhinho) Que é isso, velho cretino?
GABRIEL - Um pedaço de pão, velho podre.
VICENTE - Vai deixar por aí dando sopa, vai, velho infame?
GABRIEL - Não vou não, velho viado, não vou deixar não.
VICENTE - Sabe que estou ficando tentado, velho vil?
GABRIEL - Pode ficar tentado como quiser, velho salafrário. O pão é de minha propriedade.
VICENTE - (Transtornado) Propriedade. Velho babão. Tu me desafia...
GABRIEL - (Corta) Propriedade! (Repete, frisando) Pro-pri-e-da-de.
VICENTE - Açambarcador desgraçado!
GABRIEL - Minha propriedade, seu velho bunda-mole. Minha!
VICENTE - (Lambendo os beiços) Te descuida, te descuida...
GABRIEL - Eu, me descuidar do pão? (Gesto) Aqui, ó!
VICENTE - (Suplicante) Finge que se descuida... que esqueceu...
GABRIEL - Vai foder outro, vai. Não vou esquecer porra nenhuma. É minha refeição da manhã. Um pãozinho de nada.
VICENTE - Não é a quantidade...
GABRIEL - O que te seduz, o que te atrai (gesto) é isto aqui. Toma, velho puto!
VICENTE - Que merda! Chego a ficar com ódio de mim mesmo.
GABRIEL - Tu não vai furtar meu pedaço de pão, velho cretinaço. (Mostra) Este não vais roubar de jeito nenhum.
VICENTE - Calma, Gabriel, calma. Fica calmo. Eu te explico. Com minha idade, não posso me aventurar, sabe? Roubos maiores. Perigo.
Técnica nova. Não tenho a mesma destreza. Preciso me contentar com pequenos roubos, roubinhos.
GABRIEL - Espera, Vicente. Pergunto: você é meu condômino. Somos habitantes do mesmo teto. Da mesma habitação coletiva. Que que há?
VICENTE - Me perdoa, Gabriel, não é a fome, entendes? Não é a necessidade que me...
GABRIEL - (Corta) Sei, sei. Você não suporta a propriedade dos outros...
VICENTE - (Corta) É isso! É isso!
GABRIEL - Vai roubar aquela padaria ali em frente. O portuga é rico. Poderoso...
VICENTE - (Corta) Rico, poderoso...
GABRIEL - (Corta) Ele te dá um tiro logo, tu vai descansar em paz.
VICENTE - Gabriel, você não me compreende. Não existe pra mim poderoso ou não poderoso. Vê se entra na tua cuca, vovô amigo. Tu não tem cabeça só como enfeite, porra!
GABRIEL - Não entendo nada. Não quero entender porra nenhuma, entendeu?
VICENTE - (Suplicante) Gabriel, escuta: eu roubo teu pedaço de pão. De manhã, você dá por falta. Chora. Pede. Implora. Eu devolvo teu pedaço de pão. Tá? Não vou nem comer essa merda.
GABRIEL - Velho ladrão maníaco, este pedaço de pão tu não vai roubar. Se empregar a força, eu te mato.
VICENTE - De violência, não topo. (Depois de breve pausa) Por uma migalha de pão... Caramba! Matar um cidadão...
GABRIEL - Nunca pude suportar a fome. A fome me apavora. É, talvez, uma doença gástrica crônica, sei lá. Uma deficiência do suco gástrico, dizia o médico. De manhã, eu tenho de comer um pedacinho de pão. Faço isto desde criança. Fui acostumado. Mamãe e papai tiravam o pão da boca...
VICENTE - (Entra na fala) Dos outros pra te dar." ...
"GABRIEL - Sei, sei. Quando eles souberem que você, Vicente, roubou tanto e morreu na indigência, são capazes até de deixar de roubar. VICENTE - Como você está enganado. Não sabe nada de nada, meu fracassado contemporâneo. O roubo é uma instituição universal. Não é privilégio brasileiro. O roubo existe desde que o mundo é mundo. O roubo está no corpo e na alma do homem. Jesus Cristo morreu entre dois ladrões. Não entre dois trabalhadores. Dois ladrões, seu Gabriel, dois ladrões e levou um com Ele pras glórias do céu. Vai dizer que não?
GABRIEL - Se você tá pensando que vai se salvar das fogueiras do inferno dando uma de Simas, tás enganado, enganadinho, seu velho cara-de-pau. Roubo é roubo. Roubou tá no pau. Você já tá livre da justiça dos homens, mas vai pegar a justiça de Deus: inferno brabo.
VICENTE - Porra! Chega! Chega! Chega de discussão. A gente só tá discutindo, trocando pichação.
GABNRIEL - Também dou um chega. Depois a gente fala que os governos não se entendem e tome guerra, é uma atrás da outra, se somos aqui dois infelizes no fim da vida e a gente não se entende e tome...
VICENTE - (Corta) Pois é. Quase vamos aos tapas.
GABRIEL - É isso. Deixa pra lá os defeitos. Todo mundo tem defeito. Cada um vive como pode, do jeito que pode.
VICENTE - Tudo muda, sabe? Com o tempo as coisas vão mudando. O mundo é outro. Cada ladrão tem sua época."
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