ALDO CALVET

 

Gênero:                

  1. Drama – 3 atos

PERSONAGENS:

  1. ADRIANA

  2. SOLANO

  3. NARRADOR

CENÁRIO:

  1. Rotunda preta ou azul circunda o palco.


DISPOSIÇÃO CÊNICA:

  1. A cena é dividida em dois planos:


  2. I PLANO – abrange o proscênio


  3. II PLANO – toma o resto do espaço cênico

  4. Uma tela para projeção desce no momento oportuno.


Observação:

  1. Durante a representação desta peça, o espaço teatral – sala de espetáculo – deve estar ornamentado por cartazes nas paredes, em disposição visível do público das legendas a seguir, bem como exibidas ou focalizadas por meio de filmes, segundo o desenvolvimento das cenas e conforme o gosto do encenador:


  2. ABGAR RENAULT

  3. “... A educação é inepta para manter o mundo em estado de paz ao menos razoável”


  4. “ ...Quanto mais educado o homem tanto mais apto para matar”

  5. (JB – 29.06.82)


  6. PALAVRAS DE DARCY RIBEIRO:

  7. “... Temos a tradição do culto à mentira educacional. É uma traição à própria população”

  8. “ ... A escola nunca reconhece como sua clientela o povo brasileiro. É hostil à sua clientela verdadeira”

  9. “ ... em todos os níveis com um grau de ineficiência que envergonha todo o país.”

  10. ( Conferência no Senado – JB 05.05.83)


TRECHOS:

  1. AÇÃO – 1968

  2. SÍNTESE DA COMPOSIÇÃO DRAMATÚRGICA:



  3. 1º ATO

  4. - A exposição

  5. Traços psicológicos e sócio-econômicos das personagens –

  6. As razões e origem do conflito.



  7. 2º ATO

  8. - O conflito

  9. A constituição da família diante do establishment: namoro, noivado, casamento, procriação. Costumes convencionais burgueses. O homem face à sociedade de consumo.



  10. 3º ATO

  11. - A conclusão

  12. As reações dos fantasmas éticos abismais do meio ambiente. O imobilismo como forma de tolerância para a reconstrução dos laços amorosos e, conseqüentemente, a constituição da família passiva, conformista; fora daí, o pacto de duplo suicídio como ponto final de tudo ou fundamento filosófico de libertação, porque no mundo não existe perdão.



  13. Posicionamento semântico do título:

  14. Trata-se de neologismo sancionado pelo Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas (ONU), em Tóquio, em dezembro de 1957.


  15. 1º ATO


  16. Palco aberto às escuras. Feita a iluminação, as personagens aparecem no proscênio – 1º  Plano – em movimentos rítmicos e mímicos de quem anda, fala, gesticula etc.



  17. SOLANO – ( Atrás de Adriana, chamando-a )  Psiu! Psiu! Psiu! Ei!

  18. ( Apressando o passo )  Ei!  ( Como Adriana continue sem dar atenção) Adriana! Ei! Adriana!  ( Tomando a frente de Adriana) Adriana...


  19. ADRIANA – ( Pára com alegria indisfarçável )  Oi! Oi! Sola!


  20. SOLANO – Pensei que não quisesse mais falar comigo, puxa!


  21. ADRIANA – ( Repreensão ) Solano! 

  22. ( E ficam ambos a conversar em mímica )


  23. NARRADOR – ( Aparece rápido )  Eis aí duas criaturas e um só destino – Adriana e Solano. O que neles existe e prende é o amor-paixão. É a posse recíproca, a religião a dois da etnografia de Luc de Heusch.  Adriana e Solano nada têm de hippie, de lumpen, hipster, beatnik et-cetera, et-cetera. Solano e Adriana estão fora dessa sub-cultura que predominou em certos jovens frustrados, muito embora, como os hippies ou seus ascendentes e descendentes, Adriana e Solano não se dobrem, não estiquem e nunca se deixem amassar. Solano e Adriana não tomam nenhuma espécie de droga – LSD, maconha, haxixe et-cetera e tal. Mas Adriana e Solano exaltam a prática do amor e condenam a prática da guerra. Há, porém, entre Adriana e Solano e os hippies, os solimpsistas, lumpens, hipsters, pontos de contato, quando sabemos que a revolução hippie foi, antes de tudo, uma revolução sexual. Adriana e Solano possuem, igualmente, como os pacientes da hippiedemia, a fé religiosa do sexo.  ( Desaparece )


  24. SOLANO – ( Pegando as mãos de Adriana)  E... você?  Que tem feito? Sumida.


  25. ADRIANA – ( Sincera )  Esperado por você.


  26. SOLANO – ( Surpreso )  Esperado?!


  27. ADRIANA – Esperado, sim. No bar... Na Faculdade... Na rua..


  28. SOLANO – ( Simultâneo )  Na entrada da Faculdade...


  29. ADRIANA – ( Idem )  Na sala de aula...


  30. SOLANO – ( Como lembrando )  Sala de aula da Faculdade...


  31. ADRIANA – Nos pontos de ônibus... Na praia, a olhar o mar...


  32. SOLANO – Na batalha das ruas...


  33. ADRIANA – Ruas sem alma...


  34. SOLANO – E a alma das ruas?


  35. ADRIANA -  A alma das ruas fugiu com você.


  36. SOLANO –  ( Com extremo carinho )Adriana...

  37. (Depois de breve pausa )  Eu não fugi.


  38. ADRIANA – Não fugiu?!


  39. SOLANO –  Quem foge não se aproxima. Não procura. Eu acabo de te procurar.


  40. ADRIANA – Ora , Solano, você não procurou; não se aproximou. Você encontrou. Acaso.


  41. SOLANO – Acaso ou não acaso, o importante é que estamos juntos outra vez.


  42. ADRIANA – Outra vez... ( OT )  Que houve? Deixou a Faculdade. Conta pra mim, conta.


  43. SOLANO – ( Com algum esforço ) Adriana, confesso, perdi todo o  interesse pelo estudo. Falta qualidade no sistema educacional.


  44. ADRIANA  - ( Leve susto )  Solano...


  45. SOLANO – Sério. Perdi. Por qualquer espécie de estudo, sabe? Não adianta nada estudar neste país. Olha aí a bosta mista que é o vestibular unificado. Milhões de candidatos. Pouquíssimas vagas. As exigências vão ser maiores com o propósito de eliminar não de selecionar. Eu tenho um amigo, você não conhece, que era candidato a estudos de ciências biológicas: – não existe biotério com animais para as experiências...” ...






  46. “SOLANO – O método de seleção de candidatos pelo exame vestibular é absurdo.


  47. ADRIANA – ( Corta ) Cansei de comentar isso com você.


  48. SOLANO – ( Corta )  O vestibular é uma guerra. Não é um exame de seleção...


  49. ADRIANA – ( Entra na fala )  Não é novidade. A Cesgranrio não considera fundamental...


  50. SOLANO – ( Entra na fala )  Não considera, mas faz vestibular com pretensão de corrigir as distorções. E, pior, a Cesgranrio promove o vestibular na base da disponibilidade das vagas.


  51. ADRIANA – É o jeito. Os candidatos são muitos e as vagtas poucas.


  52. SOLANO – Depois, você sabe, briguei com o Torreão... e...


  53. ADRIANA – ( Corta ) O professor Torreão não vai se eternizar na Faculdade.


  54. SOLANO – Não vai se eternizar? Ele já se eternizou. O governo não muda ninguém. Tudo continua com todos os erros. Sai um, entra outro, a coisa é a mesma merda. Todos continuam ou mudam de posição.


  55. ADRIANA – Pensa que o professor Torreão vai ser mumificado no posto?


  56. SOLANO – É pena que não seja no poste.


  57. ADRIANA – Dizem que ele é bom administrador. Que a direção da Faculdade...


  58. SOLANO – ( Corta )  Não entende nada de pedagogia. Um reles funcionário dependente. ( Revoltado )  Conformista. Ele vai morrer de câncer.


  59. ADRIANA – ( Com indisfarçável alegria )  Quê? O professor Torreão? Quem te falou?


  60. SOLANO – Você ainda se lembra da biofísica orgânica de Reich?

  61. ADRIANA – A teoria da biofísica está na psicanálise de Mailer.


  62. SOLANO – Mailer ou Reich. ( Pensamento distante ) esses conformistas vão morrer de câncer. Eles são como os robôs – não se rebelam nunca contra o status, porque nasceram para viver em rebanho. Mas vão sentir no próprio organismo a rebelião das células.


  63. ADRIANA – Você não pode lutar fora da Faculdade. É lá dentro, no campus da Universidade, que você precisa atuar, influenciar.


  64. SOLANO – Lutar como? Eles falam que só se deve fazer política nos partidos. Não entendem que se começa a fazer política desde os bancos escolares; que é nas faculdades, nas universidades que se forjam os grandes líderes políticos do futuro.


  65. ADRIANA – Fazer política só nos partidos... Que asnático!


  66. SOLANO – É a mentalidade dominante. E, depois, querem a participação da juventude no processo político. ( Gesto ) Aqui, ó, aqui!


  67. ADRIANA – A alienação da mocidade do processo político é um fato constrangedor.


  68. SOLANO – Definitiva, cara. A transformação das universidades em fundações é uma usurpação do patrimônio do Estado para benefício de um grupo da elite intelectual...


  69. ADRIANA – ( Entra na fala )  Com prejuízo da elite social muitas vezes. Reconheço que a desnacionalização do ensino é realmente uma ameaça. Dentro da faculdade é que precisamos lutar contra a desnacionalização do ensino e...


  70. SOLANO – ( Corta )  Adriana, estamos ensanduichados. De um lado, os conformistas, imobilistas, do outro, os entreguistas; o que desejam ambos é o domínio de grupos estrangeiros...


  71. ADRIANA – ( Interrompe )  Multinacionais...


  72. SOLANO – ( Mesmo jogo ) Sobre as universidades. E há ainda os corruptos. Você sabe que o convênio com a Santa Casa não passou de uma negociata?


  73. ADRIANA – Negociata... É nova. Não sei. Palavra.


  74. SOLANO – Foi só para o curso ser reconhecido pelo MEC. 


  75. ADRIANA – Sacanagem! ( OT )  Sempre sonhamos com a autonomia universitária...” ...





  76. “SOLANO – Um país sem médico... Cinco por cento da população recebe cinqüenta e dois por cento da renda nacional...


  77. ADRIANA – Nesse caso, quarenta e oito por cento da renda são divididos por noventa e cinco por cento da população..


  78. SOLANO – ( Corta )  Divididos irmãmente... Ouça escândalo maior: oito por cento da população são donos de setenta e seis por cento do território do país.


  79. ADRIANA – ( Corta ) Latifúndio. Não dá pra entender.


  80. SOLANO – Olha, Adriana, não há como escapar. O povo, tanto no mundo burguês como no mundo proletário, é constituído de maiorias impotentes, maiorias subjugadas pelas minorias privilegiadas e dominantes. As minorias detêm o poder.


  81. ADRIANA – Ah, meu filho, os tempos são outros.


  82. SOLANO – Te enganas, meu anjo. São outros, mas o poder é o mesmo. Na época do colonialismo, o poder esteve nas mãos da aristocracia política. A seguir, o poder passou para a aristocracia econômica...


  83. ADRIANA  – ( Corta )  Espera. Aristocracia econômica...


  84. SOLANO – ( Entra na fala ) É o mesmo que capitalismo moderno.


  85. ADRIANA – Eu me orgulho de ser apenas povo.


  86. SOLANO – Quando falei povo quis dizer massa, massismo.


  87. ADRIANA – Massismo, elitismo, com todas as hipertrofias, o que não me conformo é com que você deixe os estudos.


  88. SOLANO – Você não entende certas coisas, Adriana. Minha atitude significa uma forma de protesto.


  89. ADRIANA – Tou sabendo.


  90. SOLANO – ( Distante ) Uns protestam com a greve de fome...


  91. ADRIANA – Holocausto da própria vida...


  92. SOLANO – Abandono de si mesmo...


  93. ADRIANA – Querias que todos abandonassem os bancos escolares.... Não entendo um tipo de protesto com prejuízo do desenvolvimento intelectual do indivíduo.


  94. SOLANO – É engraçado. Como você ainda acredita em desenvolvimento intelectual num mundo em que a civilização é um blefe, uma mentira. Num mundo brutal, repleto de guerras, de crimes sucessivos, de fome permanente, mundo onde os governantes não respeitam os direitos da criatura humana, mundo onde o homem não goza de liberdade, de segurança, de justiça, de paz.


  95. ADRIANA – Na América Latina, Solano...


  96. SOLANO – ( Corta )  Desculpe. Você deve dizer América Latrina.

  97. ( Conselheiral) Minha filha, presta atenção: há contra os que estudam uma conspiração, um complô de desmoralização. A campanha avança agora contra os mestres mais eminentes do nosso magistério. São acusados de comunistas. Escorraçados do país. Banidos. Vigiados.” ...




  98. 2º ATO


  99. Sala de duplex de luxo. Um pequeno tablado de 20 ou 40 cm de altura põe o ambiente em relevo. Portas fictícias laterais em marcas a critério do encenador. O efeito luxuoso deve ser mero detalhe: uma cortina, uma ou duas poltronas, uma mesa de mármore, um tapete etc. Feita a iluminação ADRIANA e SOLANO têm entrado. Adriana admira a decoração sob a expectativa de satisfação íntima de Solano, que lhe passa às mãos maquinalmente e maquinalmente é recebido um copo de uísque. É aí, de início, que Solano se deixa trair pelo subconsciente.



  100. ADRIANA – ( Depois do primeiro gole )  Drury’s?


  101. SOLANO – Não. Johnnie Walker.


  102. ADRIANA – ( Irônica ) Johnnie Walker?!


  103. SOLANO – ( Esnobativo ) Selo preto. Não deixo por menos.


  104. ADRIANA – É . ( OT )  Sim senhor! Você, Sola, me deixa confusa. Baratinada.


  105. SOLANO – ( Vaidoso )  Dei um pára no misere.


  106. ADRIANA – Um pára de estalo. Violento. ( Leve despeito )  Mustang... Com toca-fita estereofônico, ar condicionado... ( Dando voltas ) Apartamento duplex. Bacanérrimo. É novo, é?



  107. SOLANO – Novinho, novinho em folha. Acabado de construir.


  108. ADRIANA – Bárbaro! É um barato. Já percebi. Não é grandalhão,  mas tem espaço suficiente e bastante conforto. Três quartos espaçosos, suítes, dois salões, armários embutidos, atapetado, banheiros decorados, lavabo...


  109. SOLANO – ( Corta ) Gostou dos banheiros? É mármore de Carrara legítimo.


  110. ADRIANA –  ( Aponta o sofá )  Aquele acabamento de jacarandá é demais! Deve ser uma delícia a gente sentar ali.


  111. SOLANO – Ah, legal! A gente se abundalha à vontade. ( Ri )


  112. ADRIANA – Cozinha com fogão Continental 2001/ Le Grand Chef, triturador, ozonizador, aquecedor elétrico...


  113. SOLANO – Área de serviço, dependências completas, viu?


  114. ADRIANA – E a garagem?


  115. SOLANO – Três vagas.


  116. ADRIANA – Que bom... Sem gasolina... É bom porque os carros não saem da garagem ...


  117. SOLANO – É bom que você goste. Estou contente. Feliz, feliz.


  118. ADRIANA – ( Descritiva )  Máquina de lavar, azulejo até o teto. Tudo automático. ( Apontando )  Aquela estante modulada é de muito bom gosto, sabe? Cortinas combinando com as poltronas; jardim de inverno com cadeiras de vime;  gosto desta arca antiga. É um breve retrospecto ao passado. A divisão vazada com o bar... É... o bar serve aos dois ambientes. Até cantinho para jogo...


  119. SOLANO – ( Corta ) Com mesa e cadeiras.


  120. ADRIANA – Uma graça, com a luminária art-nouveau. Um grande sofá, poltronas lindas...


  121. SOLANO – ( Corta )  Vamos ao dormitório.  ( Movimento )


  122. ADRIANA – Nossa Senhora! É uma coisa! Um convite ao repouso, depois, naturalmente, de um instante de excitantes carícias diante daquela orgia de espelhos devassos e daquelas luzes indiscretas e luxuriosas...

  123. ( Leve censura ) Sola, ô...


  124. SOLANO – Tudo a seu gosto.


  125. ADRIANA – Meu gosto?!


  126. SOLANO – Sonhamos acordados com tudo isto. Quantas vezes...”...





  127. “ADRIANA – Precisamos quebrar as estruturas atuais da sociedade capitalista.


  128. SOLANO – ( Desilusão ) Estudante pobre, líder estudantil, estrutura... Como tudo isso parece distante no tempo e no espaço...


  129. ADRIANA – Estudante pobre, líder da nossa Faculdade... No meio de muitas verdades, bem que você fazia a sua demagogiazinha construtiva, vá lá...


  130. SOLANO – Demagogia construtiva... Legal, malandro.


  131. ADRIANA – Quer uma? Você não foi punido pelo 477 e vivia se dizendo vítima do 477. Um dia, você falou pra mim que o sábio ministro...


  132. SOLANO – ( Corta ) Ministro? Não me lembro. Falou o quê?


  133. ADRIANA – ( Ditatorialmente ) Diretório Acadêmico não é lugar pra política! Política é nos partidos.


  134. SOLANO – E soldado é nos quartéis! ( Desprezo ) Palhação! Partidos...

  135. ( Dá uma grande gargalhada. Na gargalhada, escurece o Plano II e projetor ilumina o Plano I – Proscênio. É o momento do flash-back. Solano se dirige ao público como líder estudantil em comício no campus da Universidade ) Senhores do poder! Eu vos peço: mais verba para a educação. Companheiros! O 477 é a castração mais violenta jamais imposta em todos os regimes de opressão. Eis, diante de todos vocês, meus colegas, uma vítima do ato monstruoso que afasta o estudante dos bancos escolares para o resto da vida. É a amputação dos estudos! A população estudantil é, na quase totalidade, constituída de estudantes pobres. Do estudante que se esforça, que passa fome, que enfrenta toda sorte de privações e que com enorme sacrifício freqüenta a escola em busca de um futuro promissor numa terra sem futuro, mas que, depois do pistolão, do compadresco, o canudo de doutor vence qualquer capacidade comprovada profissional. Depois de desafiar o mais caótico dos trânsitos, muitas vezes pendurado num trem suburbano como pingente ou dentro de um ônibus às vezes com destino até ao inferno, ele chega à sala de aula cansado, esbaforido. Pois bem, companheiros, esse estudante ferrado pela subnutrição acaba de receber na cara, dos donos da política educacional, o insulto mais humilhante: ( Frisa ) “ repetente profissional”! Por lançar seu protesto contra a opressão, quantos de nós não têm sido sacrificados no labor dos seus estudos, alguns até com o holocausto da própria vida. Temos que sofrer tudo sem protesto, sem contestação. Ainda está bem quente em nossa memória aquele estudante morto no Calabouço, só porque reclamou a péssima qualidade da comida que estava sendo servida no restaurante da classe.  O fuzilado ficou no esquecimento. O assassino na impunidade. Outros dos nossos foram feridos, presos, espancados, fichados pela repressão violenta dessa mesma polícia que nós, contribuintes, armamos e pagamos e que, incapaz e ineficiente, deixa as escolas entregues à sanha dos assaltantes! E tudo se repete ano após ano. Restaurantes são fechados por falta de verba, justamente quando nossos colegas estão em curso de férias e estágios de bolsas de trabalho nas universidades.


  136. Companheiros, o fechamento é uma simples manobra das reitorias para acabar de uma vez com os restaurantes estudantis. Grito e quero que gritem comigo: abaixo os espancadores assassinos! Abaixo os inquisidores! Os torturadores! Os verdugos dos IPMS. Estudantes! Dentro da conspiração do silêncio devemos lutar sempre por melhor qualidade do ensino. Ensino gratuito em todos os graus. Levantemos nossa voz a favor do ensino gratuito, mesmo o ensino superior, porque é o mínimo que um povo pobre deve ter. Meus companheiros! O ensino está em crise. Desordem geral. Desorganização. Exploração total. Caos, enfim! O currículo aprovado pelo Conselho de Educação é um, o executado, outro. Na medicina é chocante a precariedade de laboratórios para as aulas práticas. Hospitais-escola não existem. O estágio tem que ser feito em unidades convencionais. Nessas unidades nossos colegas sofrem na carne má vontade em tudo e em todos. Na Santa Casa evitam por todos os meios possíveis a circulação de estagiários pelas enfermarias. Há bem pouco, uma colega foi expulsa da enfermaria de Urologia. É voz corrente que os convênios não vão ser renovados, tanto na Santa Casa como em outras instituições convencionadas. E isso por quê? Porque temos feito denúncia como esta fora do campus da universidade e continuo até em praça pública. Sem a renovação dos convênios, já viram, nós estudantes de medicina vamos ficar privados de aulas práticas, tão importantes na formação dos futuros  médicos. Se, por um lado, faltam meios materiais, por outro, a carência no corpo docente é alarmante. Os professores ganham salário irrisório, todo mundo sabe. Para sobreviverem, têm que atender clientela nos consultórios e dar aulas em muitas faculdades. O magistério já não atrai mais ninguém como atividade. É profissão em extinção ou só desejada por candidato com forte atração pelo faquirismo. Como não existe professores suficientes, os currículos são adulterados ou simplificados, como eles dizem. Verifica-se, aí, o desaparecimento de disciplinas fundamentais na formação dos educandos. Vivemos a época dos chamados “currículos mínimos”. Por essa educação deficiente é que o jovem de hoje não sabe refletir, não sabe redigir. Na pedagogia dos educadores moderninhos baniram do primeiro e segundo graus redação e noções de filosofia. Companheiros! Nada de progresso econômico sem progresso social. Precisamos, antes de tudo, progredir em educação. Educar as pessoas. Devemos reclamar com ênfase mais verba para a educação! Devemos reivindicar o ensino gratuito em todos os graus. Mesmo no curso superior. Para todos. Sem privilégios. Sem discriminações. Que os recursos sejam buscados até com a abertura do jogo em todo o  país. A oficialização do jogo abre uma enorme frente de trabalho e se terá fonte de custeio para o ensino gratuito em todos os graus. Nada de usina atômica. Educação! Educação! Verba. Mais verba para edu...     ( Vai escurecendo até colapso total )” ...




  137. SOLANO – ( Numa explosão de liberdade ) Sim, minha querida. Tudo isto foi montado e decorado pra você. Agora, sim. Sou eu que falo: repara bem. Vê que tudo tem seu gosto, sua marca; tudo de acordo com o que sonhávamos, com o que sempre sonhamos.


  138. ADRIANA – ( Simultaneamente, numa eloqüência de posse ) O nosso lar! ( Solano se aproxima de Adriana e ficam ambos, por instantes, a olhar na mesma direção, como num transporte. Luz difusa. Adriana e Solano cantam e dançam a musiquinha a seguir):


  139. LAR


  140. Lar

  141. - Recanto a dois

  142. E a família a crescer

  143. Sem parar...

  144. Lar

  145. - Sonho ideal da família

  146. Nicho de amor, alegria

  147. A vibrar.


  148. Homem sem lar,

  149. Senhor,

  150. Tem piedade,

  151. Senhor!


  152. Homem sem lar,

  153. Senhor.

  154. Pária da cidade,

  155. Senhor!


  156. Homem sem lar,

  157. Senhor,

  158. Cadê caridade,

  159. Senhor?


  160. Homem sem lar,

  161. Senhor,

  162. Cadê cristandade,

  163. Senhor?


  164. Cristandade não há

  165. Não há cristandade

  166. Não há cristandade.


  167. ( Iluminação. Ao terminar a marcação, Adriana e Solano estão abraçados e logo se afastam um do outro, num rodopio, como símbolo de posse do lar )


  168. ADRIANA – ( Alegre )  O nosso lar!


  169. SOLANO – ( Idem )  O nosso lar!


  170. ADRIANA – ( Sem convicção ) Meu lar... ( A Solano )  Seu lar...


  171. SOLANO – ( Sugestivo ) Nosso! Nosso lar, Adriana. Construí todinho para nós; para o nosso amor; porque nunca – vês agora? – nunca deixei de gostar de você, Adriana. Agora, sim, podemos casar.


  172. ADRIANA – Casar...


  173. SOLANO – Casar, sim. Nunca desejamos outra coisa.


  174. ADRIANA – ( Esbarrando diante da realidade )  E isto?


  175. SOLANO – ( Surpreso )  Isto?!  Isto o quê?


  176. ADRIANA – Este lar.


  177. SOLANO – ( Sem perceber )  Este lar?  Não entendi. Não deu pra entender. Não sei o que você está querendo... e...


  178. ADRIANA – ( Corta ) Como você conseguiu?  Como adquiriu? Ganhou na Loteria? Quero saber. Eu tenho o direito de saber. Sou mais que sua noiva, que sua esposa. Sou sua fiel companheira de ideal.  ( Incisiva ) Vamos, Solano.


  179. SOLANO – ( Revoltado ) Nunca tivemos nada. Sempre andamos tesos, num miserê danado, a néris. Não havia esperança. Nunca houve esperança. Se fôssemos esperar, quando chegássemos a ter um lar assim, já estaríamos velhos, impotentes, decrépitos, vencidos pelo tempo.


  180. ADRIANA – Sei, sei. Você, Sola, nunca escondeu nada de mim...e...


  181. SOLANO – ( Corta ) Pois é, afinal, não sou um indivíduo repelente...


  182. ADRIANA – ( Corta ) Repelente?


  183. SOLANO – Sim. Repelente fisicamente... e...


  184. ADRIANA – Claro. Você é um belo tipo de homem. Um garotão ou gatão.


  185. SOLANO – Eu tinha algo em mim mesmo a explorar e...


  186. ADRIANA – ( Corta, com leve estranheza ) A explorar? Sim, o talento, a inteligência...


  187. SOLANO – ( Com certo desdém ) Tudo isso nada vale hoje em dia. Há uma luta surda contra a cultura, uma luta subterrânea com os que estudam.


  188. ADRIANA – Explorar... Não deu pra entender. Não entendo. Você tinha...


  189. SOLANO – ( Corta ) Falo explorar meus predicados físicos. Minha libido, minhas energias sensoriais... Vê se entende...


  190. ADRIANA – ( Corta ) Sua virilidade de machão.


  191. SOLANO – Machão... ( Riso )


  192. ADRIANA – Reconheço que você é um bonito rapaz. É um gatão.


  193. SOLANO – E, então? Há muita gente hoje em dia que está vendendo órgãos e...


  194. ADRIANA – ( Corta )  Você fala órgãos...


  195. SOLANO – Rim, olhos, útero...


  196. ADRIANA – Estão vendendo para matar a fome.


  197. SOLANO – Fome. Minha fome e a fome dos outros.


  198. ADRIANA – Isso não basta como justificativa.


  199. SOLANO – Não faço justificativa.


  200. ADRIANA – Quero saber qual a sua atração de venda... Que tipo?


  201. SOLANO – Sexualmente, você sabe, sofro de ejaculação retardada.


  202. ADRIANA – Ah, sim... Por isso é que...


  203. SOLANO – ( Corta ) Posso ser um copulador profissional e...


  204. ADRIANA – ( Corta ) E atração para as que sofrem de ausência de orgasmo, ninfomaníacas...” ...





  205. ADRIANA – Tenho medo.


  206. SOLANO – Sim, entendo. Ora, ora, é boa. Eu trocar você...


  207. ADRIANA – Medo que continue, que permaneça de...


  208. SOLANO – ( Convicção )  Assistente-sexual. Profissão tão nobre, tanto para o homem como para a mulher.


  209. ADRIANA – ( Afetuosa ) É duro, sabe, Sola. Era preciso que você, meu bem, conseguisse uma independência econômica total para viver, então, a sua vida de casado como qualquer burguês.


  210. SOLANO – Eu hei de conseguir. Tenho muita fé em Deus naquele negócio


  211. ADRIANA – Negócio?!  Negócio...


  212. SOLANO – ( Corta ) Das irmandades religiosas, das presidiárias forçadas à masturbação... Algumas seitas já firmaram contrato com meu agente.


  213. ADRIANA – ( Caindo em si ) Mas você pode se esgotar.


  214. SOLANO – ( Rindo )  Me esgotar?  Confio na minha libido.


  215. ADRIANA – ( Advertência )  Effertz calculou a capacidade da potência viril em mais ou menos cinco mil ejaculações. No máximo, cem ejaculações por ano.


  216. SOLANO – Mas Hirschfeld diz que tudo depende da força do instinto sexual, porque varia muito de indivíduo para indivíduo. Depois... sei me poupar.

  217. ( Escurece )


  218. NARRADOR – ( No I Plano – Proscênio )  Foi descoberta na Bósnia a fonte do amor, a água da juventude eterna de Kladjan. Os maridos da Bósnia são os mais cobiçados, porque têm atividade amorosa intensíssima devido à água. Se as mulheres lá não recorressem à pílula e outros processos anticoncepcionais teriam exércitos de filhos. Mulher na Bósnia, com cinqüenta anos, pare aos montões. Perguntei a um velho de 105 anos e a outro de 145, quantas vezes  ( gesto ) davam por mês. Os velhos responderam com a maior calma: duas vezes por dia. Aí está um grande negócio para os importadores: água de Kladjan.

  219. ( Escurece )”